domingo, 5 de abril de 2009

Pra tudo se acabar na quarta-feira

Glória a quem trabalha o ano inteiro em mutirão/ gente empenhada em construir a ilusão/ e que tem sonhos como a velha baiana/ que foi passista, brincou em ala/ dizem que foi o grande amor do mestre-sala/ o sambista é um artista e o nosso tom é o diretor de harmonia/ os foliões são embalados pelo pessoal da bateria/ sonhos de rei, de pirata e jardineira/ pra tudo se acabar na quarta-feira. “Pra tudo se acabar na quarta-feira” – Martinho da Vila


Em 1928, quando o cantor e compositor Ismael Silva cunhou a expressão escola de samba, não poderia imaginar a grandiosidade de cores, luxo e criatividade que as entidades alcançariam. Passados quase 80 anos, o carnaval do Rio de Janeiro transformou-se no mais rico, mais poderoso e mais conhecido produto de exportação do gênero no país. Esse espetáculo movimenta a economia carioca com venda de ingressos, publicidade, CDs, direitos de transmissão para a TV e gera empregos para as comunidades de samba. Isso sem falar na atração de turistas nacionais e dos quatro cantos do mundo. Segundo dados da Riotur, Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro S/A, durante os quatro dias da Folia de Momo, aportam na Cidade Maravilhosa aproximadamente 700 mil visitantes. A maioria dos estrangeiros vem dos Estados Unidos. Entre os brasileiros, os paulistas lideram com folga o quesito presença no Sambódromo.

Nem sempre foi assim. A festa começou tímida. O primeiro desfile oficial aconteceu apenas em 1935, na antiga Praça Onze. Poucas escolas participaram da festa como a Deixa Falar (de Ismael Silva), a Estação Primeira de Mangueira (de Cartola e Carlos Cachaça), e a Portela (de Natal e Paulo da Portela). Por mais de 30 anos, o desfile das escolas foi realizado de forma espontânea, sem cobrança de ingresso. O carnaval começa a ganhar os contornos atuais somente no final dos anos 60. A destruição da Praça Onze faz com que o local do desfile seja alterado diversas vezes. As suas arquibancadas tubulares foram armadas nas avenidas Rio Branco, Presidente Vargas e Marquês de Sapucaí, no centro da cidade. Em 1984, o local definitivo seria construído, durante o governo de Leonel Brizola. A Passarela do Samba – ou Sambódromo no batismo popular –, projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer é um complexo de 85 mil m2, com 700 metros de extensão e capacidade de 62 mil espectadores, nos diversos setores.

O desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro é um espetáculo inesquecível para os olhos e para o coração. Na avenida já se viu de tudo. Ou quase tudo. O sobrevôo do astronauta da NASA, a paradinha da bateria da Mocidade sob a batuta do mestre André, a Dercy Gonçalves com os seios de fora e até o Cristo Redentor maltrapilho, que provocou a ira da Igreja Católica (sendo coberto por uma lona preta devido a uma ordem judicial). O grande barato de assistir o desfile na Sapucaí é o envolvimento. Aos poucos, mesmo que você não seja um carnavalesco nato vai se ver envolvido com o evento. Já na fila de entrada no Sambódromo existe um clima de festa. Continua quando a primeira escola aponta na avenida. Não tem como ficar imune às piruetas majestosas do mestre-sala cortejando a porta-bandeira, ao luxo e à criatividade dos carros alegóricos ou à batucada de uma bateria com 250 ritmistas. Ver pela televisão não tem a menor graça. Bom mesmo é ali na avenida. No final do desfile, possivelmente você saberá cantar os sambas-enredos e torcerá para que os jurados dêem apenas nota 10 para a sua escola preferida.

Mas, digamos que você tenha ficado imune a tudo isso. Ainda pode espichar o olho para os camarotes das celebridades. Sim, eles ficam exatamente na sua frente, do outro lado da avenida. A lista inclui jogadores de futebol, atores famosos, políticos, músicos internacionais. Até a supertop model Gisele Büdchen já tomou parte da festa. Isso sem levar em conta os artistas que desfilam nos carros alegóricos das escolas ou nas alas, no meio do povo e a poucos metros de você. A Sapucaí promove o famoso encontro do morro com o asfalto, onde celebridades e pessoas simples dividem o mesmo palco. Isso é possível na fantasia da avenida.

Portanto, vale a pena encarar horas e horas nas arquibancadas para assistir as agremiações passarem, faça sol ou faça chuva. A experiência é realmente única. Como se isso não bastasse ainda tem a competição. Sim, o desfile é antes de tudo a disputa entre agremiações que têm apenas 80 minutos para mostrar um trabalho realizado o ano inteiro. As entidades estão divididas em vários grupos (Especial, A, B, etc.), conforme a sua qualidade técnica. O auge da festa acontece no domingo e na segunda, com o desfile das 14 escolas de samba do Grupo Especial, que disputam o título de campeã do carnaval. É nesse grupo que estão as tradicionais Mocidade Independente, Portela, Imperatriz Leopoldinense, Império Serrano, Salgueiro, Beija-Flor e Mangueira acostumadas com as glórias na pista. Segundo o carnavalesco Joãosinho Trinta, o desfile de carnaval é uma grande ópera popular. Nesse paralelo, o enredo seria o libreto; a bateria, a orquestra; os carros alegóricos, o cenário; e os destaques, os protagonistas. É o jeito bem brasileiro de fazer ópera. Entretanto, para colocar esse sonho em pé na avenida, a tarefa começa bem antes. Costuma-se dizer que carnaval seguinte começa a ser preparado na quarta-feira de cinzas anterior. O que aumenta a dramaticidade porque envolve muito tempo de trabalho e dinheiro. Só para você ter uma idéia, colocar uma escola sambando na Sapucaí gira em torno de 3 milhões de reais.

A competição deste ano promete ser ainda mais apimentada. A Portela, a maior papa-títulos de todos os tempos (21 vitórias), vem disposta a quebrar o jejum de 36 anos sem gritar é campeã. Outro motivo – esse comum a todas – é a evitar o tetracampeonato da Beija-Flor de Nilópolis. Portanto, mesmo que você não torça por alguma escola, a briga vai ser acirrada fantasia a fantasia. Melhor para você que pode viver o sonho de carnaval até a quarta-feira de cinzas.


Carnavais inesquecíveis


Desfiles que fizeram história na Sapucaí:

1972: Império Serrano: A verde e branco da Serrinha trouxe para a avenida o enredo “Alô, alô, Tia Carmem Miranda”, desenvolvido pelo carnavalesco Fernando Pinto. Porém, as alegorias estavam praticamente nuas. Isso causou apreensão nos componentesda escola na concentração. De repente, o carnavalesco desembrulhou dos plásticos animais, folhagens e árvores para montar uma imensa floresta, para surpresa geral. O resultado também foi surpreendente: Império campeã.

1988: Vila Isabel, com “Kizomba, a festa da raça”. As agremiações vieram para a avenida com enredo único: o Centenário da Abolição. A escola do coração de Martinho da Vila surpreendeu com suas fantasias e seu samba-enredo (“Valeu, Zumbi/ o grito forte dos Palmares/ que correu terra, céus e mares/ influenciando a abolição”) levantou a Sapucaí. Conquistou o inédito 1º lugar da escola no Grupo Especial.

1989: Beija-Flor com “Ratos e Urubus, larguem a minha fantasia”. Com o enredo de Joãosinho Trinta, a escola de Nilópolis abdicava do luxo, sua marca registrada, para falar da decadência da capital carioca. Trouxe para a avenida garis e maltrapilhos. A polêmica: a Igreja soube com antecedência que haveria um carro alegórico com a estátua do Cristo Redentor vestido de mendigo e proibiu com um mandado judicial. A solução foi cobri-lo com plástico preto e uma faixa: “Mesmo proibido olhai por nós”. Apesar de agradar o público, a Beija-Flor perdeu o título para a Imperatriz.



Dez, nota dez!!!

Como entender os quesitos de avaliação das escolas de samba


No último carnaval, você viu a sua escola do coração arrebentar na avenida (pelo menos para você). Porém, nas notas dos jurados, ela quase caiu para o Grupo de Acesso. Para evitar novas surpresas, preparamos o Pequeno Manual do Julgador Amador. Quesito a quesito, finalmente você vai aprender que evolução nada tem a ver com a teoria de Darwin.

Enredo: é a história que escola conta na avenida, definida pelo carnavalesco. Perde pontos: troca de alegorias ou alas em desacordo com o roteiro pré-estabelecido. Não perde pontos: a inclusão de qualquer tipo de merchandising, explícito ou não. Notas: 7 a 10.

Conjunto: é a uniformidade da escola em todas as suas formas - musical, dramática, visual etc. Perde pontos: falta de equilíbrio artístico no todo. Não perde pontos: eventual pane no sistema de som no Sambódromo. Notas: 7 a 10.

Bateria: considerada o coração da escola de samba, é dali que parte o ritmo da agremiação na avenida. Perde pontos: não sustentação da cadência em consonância com o samba-enredo. Não perde pontos: utilização de instrumentos de sopro. Notas: 7 a 10.

Samba-enredo: é dividido nos sub-quesitos letra e melodia. São consideradas as riquezas melódica e poética, adequação dos versos ao tema e a sua capacidade de facilitar o canto e a dança dos participantes.Perde pontos: ausência de características musicais do samba. Não perde pontos: licença poética na letra. Notas: 3,5 a 5,0 para cada sub-quesito, totalizando 10 pontos.

Harmonia: é o perfeito entrosamento entre o ritmo da bateria e o canto dos componentes da escola. Perde pontos: “atravessar o samba”, ou seja, quando uma parcela dos componentes canta um trecho do samba-enredo enquanto outra entoa um trecho diferente. Não perde pontos: eventual pane no sistema de som no Sambódromo.
Notas: 7 a 10.

Evolução: é a progressão da dança de acordo com o ritmo do samba executado pela bateria. Julga-se a espontaneidade, a criatividade, a empolgação, a agilidade e o vigor dos “desfilantes” na Marques de Sapucaí. Perde pontos: correrias e retorno de alas ao longo da avenida. Não perde pontos: abertura de “claros” (espaços) por necessidades técnicas do desfile. Por exemplo, apresentação do mestre-sala e porta-bandeira. Notas: 7 a 10.



Escolas de bambas

Em 12 de agosto de 1928, o cantor, compositor e violonista Ismael Silva, ao lado de sambistas do Estácio, fundou a Deixa Falar, a primeira escola de samba do Rio de Janeiro. Segundo Silva, seria dele a autoria a expressão “escola de samba”, por analogia com a instituição de ensino que existia bairro, de onde saíram os “professores” de samba.



BASTIDORES DO CARNAVAL


O ensaio mais tradicional

Todo mundo te conhece ao longe/ Pelo som dos teus tamborins/ E o rufar dos teus tambores/ Chegou ôôô/ A Mangueira chegou “Exaltação à Mangueira” – Aloísio da Costa e Enéas Brites


Na chegada ao Palácio do Samba, nome oficial da quadra da Estação Primeira de Mangueira, duas coisas chamam a atenção: a multidão concentrada nas proximidades (seja nas barraquinhas que vendem bebida, seja na fila para comprar ingresso) e o funk carioca da Tati Quebra Barraco, tocado no último volume nas tais barraquinhas,
com as pessoas dançando no meio da rua. Subo a escada receoso da quantidade de gente na quadra. Desde que cheguei ao Rio de Janeiro todo mundo me falava bem do ensaio da Mangueira, com a ressalva da superlotação. “Lá a coisa bomba”, me garantiu o taxista a caminho da Zona Sul.

No lado de dentro, o medo se desfez. O ambiente estava cheio, mas tranqüilo para circular. O público é basicamente de turistas. Gente na faixa dos 35 anos e alguns idosos. A Velha Guarda da Mangueira estava no palco dando conta do recado. Desfiava um sucesso atrás do outro, puxado do imenso baú dos compositores da escola. Passada a primeira hora, o 2º intérprete da agremiação assume o posto para relembrar os sambas-enredos mais recentes.

A quadra tem capacidade para oito mil pessoas. É dividida em três grandes partes. O salão, onde os componentes e turistas dançam; as laterais, onde se situam lojinhas e bares; e os camarotes, que guardam uma curiosidade. Todos são batizados com nomes de personagens da comunidade mangueirense. Só não espere ver gente conhecida. Os homenageados são pessoas como Nininha Xoxoba (passista e porta-bandeira), Jorge Pelado (ala dos compositores), Antônio Abóbora D’Água (componente da velha guarda) e João Cocada (componente).

A presença dos turistas é marcante, especialmente dos estrangeiros. O suíço Jacques Fergé tinha chegado naquela manhã de Genebra e foi conhecer o ensaio da verde e rosa. Embalado pela caipirinha, tenta uns passos desengonçados de samba. Não é só ele. Muitos outros forasteiros sacodem o quadril tentando acompanhar a música. Até o cameraman da TV japonesa se aventura na experiência de sambar. No ensaio havia um grupo de jornalistas vindo de várias partes do mundo. O que só confirma a vocação da Mangueira para ser superstar. Ou como diz uma antiga canção de Cartola, o seu poeta maior: “Minha Mangueira, és a sala de recepção”.




A feijoada mais tradicional

Provei do famoso feijão da Vicentina/ só quem é da Portela/ é que sabe que a coisa é divina “Pagode do Vavá” – Paulinho da Viola


Tarde calorenta no Rio de Janeiro. Dezenas de pessoas se concentram em frente à quadra da Portela, carinhosamente apelidada de Portelão, na rua Clara Nunes, em Madureira. O motivo do burburinho é a famosa feijoada. O sol inclemente me faz pensar se feijoada combina com a alta temperatura da cidade. Ao ouvir os primeiros acordes de samba vindos do Portelão, não hesito: compro o ingresso (R$ 5) e entro.

A quadra está repleta. A Feijoada da Portela é um acontecimento no mundo do samba carioca. Não é raro músicos ou velhas-guardas de outras agremiações aparecerem para dar uma “canja” com os anfitriões. A história começou meio por acaso. A portelense tia Vicentina costumava oferecer caldinho de feijão para o pessoal da bateria no final dos ensaios. O caldinho virou uma feijoada que era sucesso absoluto entre os sambistas. Tanto que foi imortalizada na música “Pagode do Vavá”, de Paulinho da Viola. Há quatro anos, entretanto, converteu-se num evento do calendário oficial da Portela, ocupando o primeiro sábado de cada mês.

Atualmente são servidas cerca de seis mil feijoadas. Para dar conta do recado, dez cozinheiras iniciam a feitura do prato na quinta-feira anterior, garante a Glória Silva. Essa simpática senhora de 65 anos integra o grupo de quituteiras e desfila na ala das baianas da escola. Aqui vale a primeira dica: chegue até 14h. Depois disso, a entrada fica mais tumultuada. Dica número 2: compre logo a sua ficha de feijoada (R$ 7). Mesmo que você esteja lá dentro, pode ficar sem provar a iguaria. A explicação é simples. Nem sempre a previsão da cozinha consegue suprir a quantidade de visitantes. A dica final atende por uma palavra: paciência. As fichas são vendidas exclusivamente no caixa ao lado da cozinha (à direita de quem entra na quadra. Já as fichas de bebidas são comercializadas nos bares nas extremidades do recinto).

Enquanto aguardo, conheço uns estudantes intercambistas alemães. Estavam ali para assistir o que chamaram de “Buena Vista Social Club brasileiro”. A comparação entre os músicos da Velha Guarda da Portela e os cubanos do filme de Wim Wenders é quase inevitável. Tanto um grupo como outro saiu do ostracismo para virar estrela quando seus integrantes já gozavam a terceira idade. Os sambistas ganharam projeção ao gravar o cd “Tudo Azul”, através do Phonomotor, selo de Marisa Monte. A partir disso, eles passaram a fazer shows no Brasil e no exterior. A história também reservou-lhes outros desdobramentos. Os quitutes das damas portelenses transformaram-se num livro de receitas organizado por Alexandre Medeiros e num documentário de Anna Azevedo, ambos com o mesmo nome: “Batuque na cozinha”.