domingo, 5 de abril de 2009

O caminho das hortênsias

Na Serra do Espírito Santo, pertinho de Vitória, uma rota repleta de flores, pousadas transadas, comida boa e muitos... alemães. Alemães?!


Certamente você já ouviu falar da moqueca capixaba e das praias de Guarapari. E da região serrana do Espírito Santo? Esse lugar belíssimo ainda não foi descoberto pelo resto do Brasil. Fica a apenas 40 minutos de Vitória, mas com um clima bem diferente, que mais lembra o da Serra Gaúcha. É comum a temperatura estar acima dos 30°C na capital e a metade lá no alto. Dá para pegar um bronzeado nas praias de Vitória ou Guarapari durante o dia e aproveitar o friozinho regado a vinho à noite. Percorremos a BR-262 em direção a esse pedaço surpreendente do país. No caminho, hortênsias, esportes radicais, descendentes europeus e comida de primeira.


Na saída de Vitória num sábado às 9 da manhã. O sol dava mostras de que o dia será perfeito para renovar o bronzeado. A suspeita se confirma quando passamos pela orla marítima e vemos muita gente a caminho do mar para um mergulho refrescante. Apesar da imagem convidativa, o nosso destino é outro. Porém, não menos interessante. As cidades de Domingos Martins e Venda Nova do Imigrante.


Domingos Martins, 10 da manhã


Na entrada de Domingos Martins o primeiro sinal de que estamos chegando a uma verdadeira embaixada alemã no Brasil: o pórtico em estilo enxaimel. Aos poucos a cidade vai revelando as suas raízes européias. A colonização germânica começou aqui em 1847, com imigrantes originários das regiões do Hunsrück e Pomerânia. Os sinais são visíveis. É comum ver gente de olhos azuis e cabelos loiros passando pra lá e pra cá. Também não é difícil encontrar alguém que fale uma ou outra palavra, ou, até mesmo, quem se expresse fluentemente no idioma de Michael Schummacher.


Na fila do banco, os aposentados que vieram do distrito de Melgaço não falam outra coisa que não o pomerano, um dialeto da antiga Alemanha. Muitos se cotizam para contratar uma tradutora na hora de se comunicarem com os “brasileiros”. Aliás, às quartas-feiras, o culto luterano é celebrado em alemão. A tradição se manteve, apesar da repressão recebida durante a 2a Guerra Mundial quando não podiam se expressar na sua língua natal. A nota triste é a arquitetura. Restam poucos prédios em estilo alemão como os da prefeitura, da igreja luterana ou do Hotel Imperador. “Houve uma época em que era feio ser alemão, daí as marcas foram sendo apagadas”, afirma Joel Guilherme Velten, um cônsul informal da cultura alemã na cidade.


A população gosta de contar histórias e adora receber os visitantes. O contato inicial – como em qualquer início – tem uma pitada da famosa fleuma germânica, porém logo se soltam em risos bem brasileiros. No Agrotur Center, uma espécie de shopping de lazer, o Grupo Cultural Folclórico Bergfreunde (Amigo da Montanha, em alemão) se apresenta para uma platéia de turistas atentos. Ao fim de cada número os aplausos pipocam. Segundo Werner Bruske, integrante do grupo, eles já fizeram espetáculos no sul do Brasil, Estados Unidos e na própria terra dos antepassados, a Alemanha. O cotidiano passa sem sobressaltos entre uma polca e outra.


Se a vida passa devagar no centro da cidadezinha, o mesmo não acontece a alguns quilômetros dali. As corredeiras do rio Jucu recebem visitantes de todas idades, que pagam para terem os nervos testados num passeio de emoções radicais. Falta coragem para eu fazer o mesmo. Porém, uma coisa mexeu com os meus brios. Um grupo de turistas volta do rafting. Entre os adultos, Letízia Trannin, uma simpática carioquinha de onze anos. Ainda com os lábios roxos de frio, ela conta maravilhas da aventura. Se ela foi, eu, um marmanjo, tenho de ir.

Os borrachudos são uma barreira a ser vencida. Eles fazem a festa enquanto são passados os procedimentos segurança – o meu reino por um repelente! Todos estão sérios. Para aliviar a tensão, o instrutor JB explica que a sigla do seu nome significa “gente boa”. Subverteu o português, mas não perdeu a piada. No meu bote vai uma família inteira de Barueri. Olinto Costa trouxe os filhos Fábio e Daniel para radicalizar no Jucu. Só não conseguiu convencer a esposa Elizabeth, que prefere ficar filmando a aventura familiar.


A água está geladíssima. Já na primeira descida o banho é inevitável. Logo esqueço o frio. Pudera, a adrenalina vai a mil por hora e os remos não param um instante. “Rema, rema”, grita JB aos afoitos navegantes. Quando a queda d’água é muito forte e não há muito a fazer apenas avisa: “reza, reza”. Todos se divertem. No final dos 8 quilômetros de percurso, um piquenique preparado pela equipe do rafting reanima os exaustos remadores.


A próxima parada é uma ponte na ferrovia que liga Vitória a Cachoeiro do Itapemirim. É hora do rapel. Tudo é grande por ali. Para chegar atravessamos um túnel de 250 metros. São simplesmente 90 metros de descida em negativo. Ou, num linguajar leigo, sem qualquer apoio para os pés. Achei que era emoção demais. Resolvi dar um refresco para o meu anjo da guarda e declinei do convite. Lá embaixo corre o braço norte do nosso já conhecido rio Jucu. A estrada de ferro está em plena atividade. Tanto que enquanto estávamos ali passou um trem limpa-trilho em direção a capital. Mas não se preocupe nunca ninguém foi corrido pelo trem como acontece nos desenhos animados. Domingos Martins mostra que é uma alemãzinha pra lá de radical.


Venda Nova do Imigrante, 8 da manhã


Já na chegada a Venda Nova do Imigrante o frio apertou. Pudera! A temperatura média anual é de 18°C. O que justifica as hortênsias, um ícone dos lugares frios, no meio da estrada. Esse clima ameno atraiu os imigrantes italianos que chegaram a região por volta de 1890. É corriqueiro encontrar sobrenomes como Busato, Peterle ou Carnielli. Os descendentes de italianos sempre produziram tudo o que consumiam. E não é que isso virou atração turística em Venda Nova do Imigrante? A coisa começou por acaso. Os turistas de passagem começaram a ir às propriedades rurais para comprar produtos e ver como eram feitos. A atividade ganhou contornos profissionais. Hoje são mais de vinte de propriedades que se dedicam ao agroturismo. Cada uma com sua especialidade, o que deixa mais interessante o tour pelas diversas fazendas. Os visitantes vêm em caravanas organizadas pelos hotéis da região ou em seus próprios carros (mineiros em sua maioria).


O casal paulista Sabrina e Eduardo Rizzo veio passar uma lua-de-mel diferente e adorou. Repete a experiência pela terceira vez, sempre trazendo gente nova para vivenciar o cotidiano na fazenda. Dessa vez vieram com três pessoas da família. “É um resgate de onde tudo começou”, afirma Sabrina. Todos fazem coro. É possível ver o café da colheita à xícara. Henrique, 12 anos, não desgruda o olhar da peneira por onde passa a farinha do fubá, uma das especialidades da fazenda da família Carnielli.


Não muito longe dali, a família Lorenção se desdobra para receber os turistas. O lugar se dedica à produção de tomate seco e do socol, uma espécie de presunto que curte por até quatro meses. Muitos descendentes de italianos vêm das grandes cidades para conhecer um pouco daquilo que avós sempre contavam sobre os hábitos dos colonos. Isso quando não são os próprios nonnos não revivem o passado. Grupos de estudantes, especialmente universitários de agronomia, dão as caras no sítio de 36 hectares.


Um ônibus cheio de turistas está saindo do Sítio Família Busato. Ninguém volta de mãos vazias. Um leva uma garrafa de cachaça, outro um pote de iogurte artesanal. Lúcio, filho do proprietário, já se prepara para receber outro grupo. Na sala ao lado, a mãe Iria trabalha duro na feitura de novos produtos enquanto o irmão, Carlos, cuida do alambique. É assim a vida dos Busato desde que começaram com agroturismo em 1991. Os queijos feitos na propriedade são sucesso absoluto. Mas se você quiser comprar terá de ficar numa fila de espera de três meses. Entre os clientes, gente de Salvador, São Paulo, Fortaleza e até um suíço que mora no sul da Bahia.


Hora do almoço. A Fazenda Saúde é o destino certo dos turistas. O lugar nasceu para ser um pesque e pague (que ainda existe), mas ficou famoso pelo almoço que mescla culinária italiana e mineira. Tudo comandado pela matriarca Marta Franceschetto, onze filhos, olhos muito claros e um leve sotaque italiano. As mesas são antigas máquinas de costura. Para acompanhar o seu almoço, não deixe de provar o vinho de jabuticaba. Na sobremesa nada mais natural que doces de carambola, mamão com coco e pé-de-moleque. O lugar é muito agradável. É comum ver famílias inteiras sentadas ao redor do lago enquanto assistem ao passeio majestoso dos pavões de estimação da fazenda. Uma bela imagem para levar da Serra Capixaba.


A estrela da rodovia


Na altura do quilômetro 90, está a grande estrela da BR 262, a Pedra Azul. A formação rochosa de 1822 metros de altura ganhou esse nome porque conforme a incidência do sol, ela ganha um tom azulado. Porém, na verdade, a Pedra Azul é multicor. Cinza logo cedo, verde no meio da manhã, azul ao meio-dia e vermelha no fim do dia. Ela fica dentro de um parque estadual. Por isso, se você quiser vê-la mais de perto é necessário agendar a visita (tel. 3248-1156, das 8 às 17h30). Junto a ela é possível fazer caminhada de 3 horas pelas trilhas do lagarto e das piscinas naturais. Sem dúvida, ela é a estrela da rodovia.


O padre pé-de-vento


Pode anotar. Quando chegar a Venda Nova do Imigrante você vai ouvir: já conheceu o Padre Cleto? Fomos. A princípio parecia uma figura frágil dentro do casaco de lã e boina cobrindo a cabeça. Logo se transforma numa metralhadora giratória que não pára de falar. “Será que não tem um lugarzinho para mim na revista de vocês?”. O velho padre Cleto Caliman é um pé-de-vento. Diz que já zanzou pela França, Espanha, Portugal, Alemanha e pela sua bella Itália. A próxima parada é o Chile. Faz questão de demonstrar que é um poliglota de carteirinha. Desanda a falar em italiano, francês e espanhol. Só não teve jeito de aprender inglês. “E também falo o português com indiscreta infâmia”. Os seus 89 anos o ensinaram a rir de si mesmo. Além de pé-de-vento, o religioso tem fama de festeiro. A Festa da Polenta, o maior evento da cidade, saiu de sua cabeça branquinha. Flamenguista roxo, no período em que serviu numa arquidiocese do Rio de Janeiro, sempre dava um jeitinho de ir ao Maracanã para ver a equipe rubro-negra jogar. Afirma que viu o milésimo gol do rei Pelé.