domingo, 5 de abril de 2009

Aventura na rota de ninguém

Num catamarã sem cabine e sem motor, dois velejadores vão do Chile à Polinésia pela rota que barco nenhum quer fazer

Ao verem a terra firme se distanciar até o catamarã Bye Bye Brasil virar uma ilha cercada de Pacífico por todos os lados, Beto Pandiani e Igor Bely sentiram-se aliviados. Os últimos dias da preparação para a travessia do maior oceano do mundo não tinham sido fáceis. O trabalho na montagem final do barco, a liberação pela Marinha Chilena e os reveses meteorológicos, que adiaram a partida em três oportunidades. Isso sem contar a tensão pré-viagem. “Como nas viagens anteriores, senti medo antes de colocar o barco n’água, depois passou”, garante Pandiani. A ansiedade era uma tripulante indesejada, porém inevitável. Será que a embarcação agüentaria? Como seria o tempo em alto-mar? O corpo suportaria os dias exaustivos e as noites sem dormir direito? Haveria os temíveis tubarões pelo caminho? As perguntas eram muitas e as respostas, poucas. Outro fator que trazia uma dose extra de desafio à aventura. O caminho é uma rota de ninguém. Quase nenhuma embarcação percorre o caminho entre o Chile e a Polinésia Francesa nesta altura de paralelo, quer sejam veleiros, quer sejam navios mercantes. Em outras palavras, qualquer resgate poderia levar horas, talvez dias. Por isso, o grande número de equipamentos de comunicação e de orientação a bordo, que incluía GPS, telefones via satélite e notebook. Agora todas as preocupações ficaram para trás como os picos nevados da Cordilheira dos Andes nevada, a última visão que a dupla teve do continente.

O dia da partida na cidade chilena de Viña del Mar estava perfeito: ensolarado, céu azul, ventos de 12 nós favoráveis e mar calmo, porém fazia frio. Não houve sobressaltos, conforme previra o meteorologista Pierre Larsnier, uma espécie de São Pedro da equipe. Diretamente da França, ele deu sinal verde para o desafio, mas aconselhou a mudarem de rota. Deveriam seguir até a Ilha de San Felix para só depois descerem a Páscoa. Por causa do fenômeno El Niño, os ventos Alísios de Sudeste, uma constante na região, estavam soprando na posição mais ao Norte. Em tese, essa operação garantiria ventos regulares, mas com aumento considerável do trajeto. Enquanto isso, a fotógrafa Maristela Colucci e os cinegrafistas Dudu Teiman e Maurício Porto tomavam um avião para a ilha chilena, onde organizariam a base de apoio da aventura.

Nem tudo foi mar de almirante. A mesma noite fria e sem lua que cravejava o céu de estrelas, parecia multiplicar a solidão em alto-mar. Os navegadores se revezavam em turnos de duas horas junto ao timão. O sono não passava de cochilos na barraca com a cabeça para fora e amarrado por um cabo para não cair na água. O cansaço na manhã seguinte era evidente. Eles sabiam que a adaptação seria lenta. Até que aconteceu o pior dos pesadelos de qualquer velejador: faltou vento. Foram 20 horas de calmaria. E como uma dificuldade nunca vem sozinha, Beto, desgastado pela primeira noite, passou mal. Nada grave. Contudo, no meio do oceano, as coisas ganham outra dimensão. “Pensei: o que estou fazendo aqui?”, relembra Pandiani. O companheiro segurou as pontas: dessalinizou água, preparou a comida, transmitiu dados pelo notebook acoplado ao telefone via satélite e conduziu a embarcação.

Os dias seguintes foram de ventos fortes, mar mexido e temperatura baixa. A rotina a bordo transformou-se numa montanha russa gélida e molhada. A água salgada varria o convés do barco a todo instante. Até coisas simples como abrir a gaiúta para pegar mantimentos era uma tarefa difícil. Dormir também converteu-se numa aventura e tanto. “Minha barraca entrou água a noite toda”, conta Beto. Ainda esperavam os Alísios previstos por Pierre, que trariam ventos favoráveis e calor. Apesar dos percalços da vida marinha, ao passarem ao largo da ilha de San Felix, reportaram via rádio as boas condições a bordo ao destacamento da Marinha Chilena.

Um dia depois, a dupla descobriu que a caixa de leme estava trincada. A solução foi baixar as velas e fazer o conserto. Igor improvisou dando voltas com o cabo espectral para reforçar a peça de alumínio. Caso o remendo não funcionasse, o barco ficaria se direção. O ritmo da viagem teve de ser diminuído consideravelmente. Avisada pelo telefone via satélite, a equipe em terra já providenciava um soldador na Ilha de Páscoa.

Existe uma grande diferença entre a Travessia do Pacífico Sul e as outras aventuras de Beto Pandiani. Agora a empreitada é em mar aberto, longe do continente. O catamarã é apenas um pontinho no meio da imensidão oceânica. As dificuldades têm de ser superadas com jogo de cintura. Por exemplo, não dá para ancorar para consertar o barco num estaleiro. O jeito é se virar com o que tiver na hora. A presença de espírito é fundamental. “Vale mais a atitude mental que a força física”, ensina Pandiani. A vida a bordo é espartana. O segredo é se realimentar com pequenos momentos de felicidade que a viagem proporciona como uma paisagem espetacular ou um belo pôr-do-sol. Ou até mesmo dos instantes quase felizes. A dupla viu a corcova de baleia e muniu-se câmera de vídeo e fotográfica para registrar o fato. “Ela nos driblou e não apareceu mais”, diverte-se Beto Pandiani.

Pouco a pouco, o frio deixa de ser um inimigo constante. O mesmo não acontece com a falta de vento. A dupla navega em ziguezague em busca das melhores posições das correntes de ar, segundo as orientações do meteorologista Pierre. Cumprem cerca de 150 milhas diárias. Se o catamarã fosse em linha reta, essa distância não passaria de cem. Somado ao problema da caixa de remos isso representa um pequeno atraso no cronograma da chegada. A vida no Bye Bye Brasil adquire ares caseiros. Os navegantes preparam a comida liofizada – um tipo especial de alimento desidratado – na microcozinha, ouvem as 15 mil músicas armazenadas no Ipod e lêem. Com o piloto automático ligado, Pandiani devora “O longo caminho” de Bernard Montessier enquanto Igor lê um exemplar cuja tradução do título francês é bem sugestiva: “Mas... O que eu estou fazendo aqui?”. A biblioteca de bordo ainda conta com mais dois livros. Eles também tentaram pescar, mas sem sucesso.

A adaptação ao cotidiano embarcado não impedia que Bely e o colega de travessia sonhassem com roupas secas, saladas variadas, cama confortável ou banho quente. Porém, antes de ancorarem em Páscoa, a dupla enfrentou tempestade e dias nublados. Isso os obrigou a mudar a matriz energética da embarcação. As placas solares deram lugar ao dínamo hidráulico, que jogado à água, gerava força para os equipamentos eletrônicos. Aliás, o Bye Bye Brasil consome apenas energia limpa. Desde o combustível para os aparatos eletrônicos até na sua propulsão à vela.

“Beto, olha em frente!”. Depois de quatro mil quilômetros, 18 dias velejados e pequenos contratempos, Igor contava a boa-nova: Ilha de Páscoa à vista. A chegada foi com pompa e circunstância. A dupla foi recebida no mar por uma comitiva de remadores de pironga, cujo campeão local da modalidade subiu a bordo e deu as boas-vindas em Rapa Nui, a língua nativa. A emoção aumentou ainda mais no reencontro com a equipe de apoio Maristela, Dudu e Maurício. Em terra firme, um sem-número de homenagens envolto num grande de espanto. Os navegadores tinham realizado um feito e tanto. Este tipo embarcação é usada somente em regatas costeiras nunca travessias complexas como essa. De certa forma, o catamarã fez a viagem de volta para casa. Afinal, a possessão chilena no meio do Oceano Pacífico faz parte do conjunto de ilhas da Polinésia, lugar onde nasceu esse modelo de barco.

Os velejadores e a equipe de apoio foram acolhidos pela numerosa família de Tito Atan, que ofereceu um banquete de recepção. “O barco é um embaixador”, filosofa Beto Pandiani. Acredita que se chegasse como um turista nunca seria recebido da mesma forma. Muito menos ficaria numa casa Rapa Nui no vilarejo de Atan Pakarati, um lugar gramado no alto da montanha com vista privilegiada para o mar azul. “A família que nos ciceroneou pela ilha, contou seus costumes e até nos apresentou aos amigos”, festeja a fotógrafa Maristela Colucci. Enquanto a caixa de lemes do barco era soldada eles aproveitavam os passeios pela Ilha de Páscoa. Depois de 15 dias, acercava-se o momento da partida.

A hora de dizer adeus não foi fácil. “As partidas são sempre muito duras”, confirma Maristela. Ainda mais num lugar onde conviveram intimamente com os moradores, que subiram no alto do vulcão Rano Raraku para ver o barquinho sumir no horizonte. Igor e Beto estavam de volta ao mar, salgado mar. Desta vez seriam pouco mais de dois mil quilômetros até Mangareva, metade da distância percorrida na primeira perna da viagem Viña-Ilha de Páscoa. Como de praxe, a equipe de apoio voou para o destino seguinte da Travessia. Os dois primeiros dias de retomada foram de vento calmo, muito sol. O calor era o terceiro passageiro do catamarã. A temperatura média alcançou os 32 graus centígrados. A única coisa refrescante eram os banhos de balde com água do mar.

Vencer o tédio é outro desafio das travessias de longo curso. Não tem novidades no horizonte. Os dias se sucedem com a onipresente paisagem da massa oceânica. Por isso, a afinidade entre os navegantes é fundamental para suportar a opressão deste deserto de água. Infância, crise econômica mundial, futebol, piadas de papagaio: todos os temas são visitados. Contudo, chega uma hora em que não tem mais assunto. Pandiani recorda um desses instantes. Ambos passaram o dia calados, quando, ao cair a noite, Igor puxou conversa. “Está bem friozinho, né, Beto?”. O outro, sem tirar os olhos do mar, respondeu: “É”. E o papo ficou por aí. A viagem interior é muito mais profunda que a viagem em si.

A 300 quilômetros de Mangareva um fato trouxe novo movimento à rotina de Igor e Beto: descobriram uma rachadura na travessa frontal do barco. Esta é peça que mantém os dois cascos paralelos e unidos. Portanto, fundamental no catamarã. O risco da embarcação se desmanchar era iminente. O pior só não aconteceu porque a estrutura das asas adaptadas ao Bye Bye Brasil segurou as pontas. A solução foi improvisar outra vez com o cabo espectral para evitar que a combalida travessa se rompesse em definitivo. O pessoal de apoio em terra foi avisado e acionou as autoridades. “Mobilizei toda a Ilha de Mangareva e ligava para eles cada quatro horas pelo telefone via satélite”, relata Maristela Colucci.

A Marinha Francesa monitorou a embarcação por rastreador. Estava a postos para entrar em ação, mas com uma ressalva. O resgate se resumiria aos tripulantes. O catamarã com todos os materiais e equipamentos ficaria para trás. Os dias seguintes foram de pouca vela devido aos ventos de até 35 nós que sopravam. Mesmo assim a velocidade era muito alta para um barco avariado. “Jogamos uns 100 metros de cabo na água para fazer arrasto e freá-lo um pouco”, conta Pandiani. A cama de Beto ficava do lado defeituoso. O jeito foi revezar a barraca com Igor no turno da noite.
Apesar dos problemas, a confiança em chegar ao destino seguia inabalável. Beto repetia mentalmente o mantra: “Este barco vai chegar a Mangareva”. Após o perrengue, aportaram sãos e salvos na pequena baía da ilha Polinésia escoltados pela Marinha Francesa. No píer, foram recebidos com aplauso por um pequeno grupo de pessoas. Entre eles, a equipe de apoio e a prefeita do lugar. O primeiro capítulo da Travessia do Pacífico Sul programado para terminar no Taiti ancorou em Mangareva. Mas, com tantas emoções fortes, ninguém se importou.